Vol. 2 N.º 2 (2023): Fiat Lux
Fiat lux! Quer compreendamos a forma que tomou a manifestação do começo do mundo através da religião, da física, da biologia, da literatura, ou de qualquer outro modo de saber e pensar, a imagética do começo é quase sempre uma imagética da luz. Por um lado, a luz rompe o plano do escuro, o plano daquilo que existe enquanto não-existência – o imundo, portanto; por outro, a luz move-se, expande o que ilumina a partir do ponto de foque, e, nesse movimento, revela e cria. A luz faz ver. Se, ao nível da linguagem, ao nascerem, todos os seres são dados à luz, na morte, ou em momentos de clausura, a luz empurra-nos para a transgressão: caminhamos para a luz, vemos a luz ao fundo de um túnel, procuramo-la.
Na natureza biológica, química ou mesmo teológica da sua experimentação, e mesmo para além disso, a luz é, possivelmente, o mais profícuo e universal dos símbolos humanos, e, enquanto ocorrência natural, até inter-espécies. Ela reporta-nos ao espaço intersticial que jaz entre um passado remoto e primordial e um presente que, marcado pelo passo da sua velocidade, traça possibilidades de futuro. O lugar que ocupa é, portanto, um não-lugar entre a agência da revelação e a ontologia do que está por ser revelado. A sua função é desocultar, no sentido da palavra grega aletheia – revelar o que está oculto, para evitar a queda nas sombras da morte (etimologicamente, a-letheia é a negação do Lethes, o escuro rio do esquecimento existente no Hades). Porém, ao desvelar o mundo desconhecido, a luz não deixa de criar sombras, seja projectando-as, seja evidenciando o negrume dos cantos
recônditos.
Tendo isto em mente, a estrema: revista interdisciplinar de humanidades lançou como desafio a ponderação ensaística sobre o tema. Desta resulta a presente publicação, que, em conjunto com o número anterior, seu par, enquadra no binómio sombra-luz variadas experiências de reflexão. A Equipa Editorial espera que estas reflexões venham enriquecer a forma como, nas humanidades em particular, e na academia, de forma mais generalizada, se concebem, trabalham e teorizam, trans-disciplinarmente, formas, métodos e imagens tão arquetípicas quanto concretas.
Não de somenos e finda esta introdução, numa nota mais pessoal, a Equipa Editorial, que com este número fecha o seu mandato, gostaria de exprimir a sua gratidão para com todos aqueles que com ela colaboraram, tanto neste número quanto no anterior. Muito obrigado a todos os autores, avaliadores, membros do Conselho Científico Consultivo, ao Secretariado e à Direcção do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, designers, revisores linguísticos e técnicos de informática. Agradecemos também, muito especialmente, a todos os que acreditaram neste projecto e, nos mais variados contextos, nos inspiraram e motivaram a torná-lo real.